Em três semanas de vacinação contra a Covid-19, país tem quase 3 mil denúncias de fura-fila

Em três semanas de vacinação contra a Covid-19, país tem quase 3 mil denúncias de fura-fila
Início da vacinação contra a Covid-19 gerou engarrafamento, fila e aglomeração em Belém, no Pará Foto: Raimundo Paccó/FramePhoto / Agência O Globo

RIO — Desde o início da vacinação contra a Covid-19 no país, em 17 de janeiro, já foram registradas ao menos 2.982 denúncias de possíveis casos de “fura-fila” da imunização — o que significa que uma em cada 1.341 doses aplicadas no país teria sido endereçada a alguma pessoa fora dos padrões de prioridade estabelecidos.

Entre os estados com mais relatos de infrações estão o Rio Grande do Norte, com 640; Minas Gerais, com 589; e Rio de Janeiro, com 413.

Os dados foram levantados pelo GLOBO junto aos Ministérios Públicos e às Ouvidorias Gerais dos estados e fazem parte de um cenário de escassez de imunizantes e problemas de planejamento e distribuição.

Especialistas dizem que este já era um tipo de fraude esperada e ressaltam que os casos de fura-filas podem ser ainda mais numerosos no país. Isso porque moradores de muitos municípios podem temer denunciar ou nem sequer ter acesso a mecanismos de denúncia. Além disso, os diferentes critérios de prioridade para vacinação de cada município dificultam a fiscalização e o trabalho dos MPs.

Os MPs e as secretarias de Saúde vêm investindo em canais para receber denúncias da população, por e-mails ou mensagens de WhatsApp. Os relatos recebidos vão para as promotorias, que seguem com as investigações.

— São mais de 2.500 pessoas que passaram à frente de outras 2.500 que poderão morrer da doença, em um ímpeto egoísta — observa o professor da Escola Paulista de Medicina da Unifesp Gabriel Maisonnave, que reitera a importância de se resolver urgentemente o problema de escassez de vacinas e agilizar a imunização, que ele considera muito lenta.

Impacto individual

A epidemiologista Carla Domingues, coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI) entre 2011 e 2019, chama a atenção para os danos pessoais do ato de furar a fila. À medida que se deixa de vacinar alguém de risco, diz ela, cria-se uma “desigualdade que privilegia quem não está em risco”.

Domingues, no entanto, diz que o país enfrenta uma escassez de doses tão grande que essas infrações, por enquanto, não terão impacto a nível populacional. De acordo com ela, ainda não é possível falar em proteção coletiva.

Ela ressalta ainda que um dos principais problemas hoje é a enorme diferença de critérios adotados por municípios para a vacinação, o que confundiria a população e deixaria brechas para fraudes.

— O Ministério da Saúde delegou para os estados e municípios decidirem seus critérios de prioridade. Isso torna a campanha desorganizada e sem efetividade. Para se ter a compreensão da sociedade de que devem ser imunizadas as pessoas com risco, a comunicação tem de ser uniforme, e não cada lugar com uma estratégia, inclusive deixando políticos serem vacinados. E é preciso ser transparente com a população: dizer “não tem vacina suficiente”.

Maisonnave lembra que as secretarias municipais de Saúde já tinham informações sobre as populações a serem vacinadas, principalmente sobre idosos, devido à experiência prévia com a vacinação anual da gripe.

— Já havia listas prévias, baseadas na vacinação da gripe. O quantitativo de vacina contra a Covid-19 estava espelhado no que se sabia, de uma população de 60 milhões de idosos. Ninguém pode reclamar de falta de informação. Mas há muitos problemas no processo, os profissionais de saúde estão exaustos.

O Ministério da Saúde disse orientar que estados e municípios sigam as orientações coordenadas pelo PNI, que prevê ciclos de vacinação de acordo com os grupos prioritários definidos em estudos populacionais. A pasta reiterou que a gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) é “tripartite”, ou seja, os municípios têm autonomia para executar o processo de vacinação, e que é importante que os cidadãos informem possíveis irregularidades às secretarias de Saúde.

Como muitas denúncias ainda estão sob investigação, os MPs ainda não apontam os principais “furadores de fila”. Mas, entre os nomes já divulgados pela imprensa, há anônimos, funcionários públicos e seus familiares e políticos. No Piauí, por exemplo, prefeitos de duas cidades do interior do estado estão sendo investigados pelo MP após denúncias de que teriam tomado o imunizante mesmo não fazendo parte do grupo de risco.

No Amazonas, quatro estudantes da área da Saúde, dois advogados e um casal proprietário de uma empresa de alimentos estão entre os que não deveriam ter recebido o imunizante.

No Acre, a esposa de um ex-comandante da Polícia Militar e estudante de psicologia foi acusada de furar a fila após postar uma foto sendo imunizada na Policlínica da PM-AC, em Rio Branco.

Os casos que chegam aos MPs são encaminhados para as promotorias para investigação. Se confirmada a ilegalidade, é feita uma denúncia criminal ou é aberta ação por improbidade administrativa.

Impasse jurídico no AM

No Amazonas, que sofre com o número de casos de Covid-19 e escassez de recursos de saúde e onde a ocorrência da nova variante do coronavírus preocupa especialistas e põe em cheque a vacinação, o MP informa que todas as apurações com relação a possíveis irregularidades na imunização estão paradas. Isso ocorre por conta de um impasse jurídico.

O MP está esperando a decisão do Tribunal de Justiça do Amazonas para definir se o processo de investigação fica no âmbito estadual ou se vai para o federal. Entre dias 1o e 3 de janeiro, a Ouvidoria-Geral do MP contabilizou 393 relatos recebidos e cadastrados no SAJ/MPAM.

Os MPs de Amapá, Roraima, Alagoas, Piauí e Sergipe não responderam ao GLOBO.

Fonte: Ana Paula Blower/O Globo