Discussão sobre pobreza menstrual cresce em todo mundo, e governos começam a agir

Discussão sobre pobreza menstrual cresce em todo mundo, e governos começam a agir
Meninas ouvem médica falar sobre a importância de evitar a gravidez na adolescência em Adumasa, no sul de Gana Foto: FRANCIS KOKOROKO / NYT

Em novembro de 2020, a Escócia se tornou o primeiro país do mundo a aprovar uma lei tornando obrigatória a distribuição gratuita de absorventes e outro produtos de higiene menstrual em instalações publicas, incluindo escolas e universidades. Segundo instituições internacionais e ONGs que se dedicam à questão, pelo menos 500 milhões de mulheres e meninas em todo o mundo não têm acesso a itens de higiene adequados para usar durante a menstruação, a maioria delas em países de baixa e média renda. Mas a pobreza menstrual — que engloba ainda a falta de conhecimento sobre a própria menstruação — não atinge apenas as nações mais pobres. Em resposta a uma crescente conscientização sobre esse problema global, governos nacionais e locais vêm, aos poucos, adotando medidas para enfrentá-lo. 

Os estigmas e tabus sobre a menstruação, a crise agravada pela pandemia, além do crescimento da desigualdade em países ricos, tornaram o problema muito mais comum do que se pensa: nos EUA uma pesquisa do ano passado estimou que que 16,9 milhões de mulheres viveram seus efeitos durante a pandemia; no Reino Unido, três em cada dez britânicas com idades entre 14 e 21 anos tiveram dificuldade de acesso aos produtos de higiene pessoal no ano passado.

A discussão, que nos últimos anos vem crescendo em todo o mundo, aportou no Brasil de maneira mais ampla apenas na semana passada, quando o presidente Jair Bolsonaro vetou um projeto de lei para distribuição gratuita de absorventes a estudantes de baixa renda de escolas públicas, presidiárias e mulheres em situação de rua ou de vulnerabilidade extrema. Agora, o Congresso tem 30 dias para decidir manter ou derrubar o veto. Para analistas, no entanto, o foco está muito no controle da menstruação e menos em combater estigmas e tabus.

Até hoje, apenas dois países aprovaram leis nacionais que tornam obrigatória a distribuição gratuita de absorventes a meninas e mulheres em situação de vulnerabilidade: a Escócia, de maneira ampla no ano passado, e o Quênia, que em 2017 determinou que todas as meninas recebessem produtos higiênicos gratuitamente enquanto estivessem matriculadas em uma escola.

No país, um dos mais afetados no mundo pela pobreza menstrual, aproximadamente 50% das meninas e jovens em idade escolar não tinham, até então, acesso a produtos menstruais.  Mas os avanços, embora pouco avaliados até agora, já começam a render frutos. Um relatório deste ano do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) mostrou que, embora tenha havido preocupações sobre a sustentabilidade e alto custo do projeto, o governo queniano conseguiu resultados positivos em maior escala do que muitos programas semelhantes de ONGs que atuam no país. Além disso, políticas semelhantes já foram implantadas em outros países em nível local, seguindo o exemplo queniano.

Na Escócia, 11 meses após a aprovação da nova lei, ainda não se sabe muito sobre seus impactos, explica Camilla Mork Rostvik, que faz parte da Rede de Pesquisa de Menstruação do Reino Unido, da Universidade de Saint Andrews.

— Nesse ínterim, não sabemos o que mudou. A Covid-19 alterou tanto a vida das pessoas na Escócia que isso terá que ser corrigido nos dados também — explica Rostvik ao GLOBO.  — Mas, desde então, cidades e condados em outros países, como Índia, Canadá, Estados Unidos, Escandinávia e Nova Zelândia já adotaram ou consideram adotar uma lei semelhante. A mudança será, sem dúvida, lenta, mas essas iniciativas respondem a parte do estigma menstrual em todo o mundo, embora outras questões como dor, tabus contra vazamento nas roupas e o próprio silenciamento das mulheres ainda não estejam muito sobre a mesa. 

Mesmo que o combate à pobreza menstrual ainda não seja lei na imensa maioria dos países, nos últimos anos, várias nações vem eliminando impostos sobre absorventes, que em muitos lugares sao considerados itens de luxo nao essenciais. O Reino Unido adotou a medida em janeiro. Nos EUA, dez estados o fizeram desde 2016, e já são 23 os que nao taxam tais produtos. Em outros 17, iniciativas legislativas nesse sentido foram derrotadas.

— Na verdade, os países do Sul global adotaram políticas relacionadas à higiene e à saúde menstrual muito antes: Quênia, África do Sul, Índia, Nepal, Senegal, para citar apenas alguns. Nesses países, muitas das políticas têm como alvo meninas nas escolas, com fornecimento de produtos de higiene e educação sobre higiene menstrual —  explica Inga Winkler, criadora e codiretora do Grupo de Trabalho sobre Saúde Menstrual e Justiça de Gênero da Universidade Columbia, em Nova York.

Para Winkler, no entanto, o foco está muito no controle da menstruação.

— A mensagem geral que recebemos é para manter nosso corpo bagunçado sob controle, para mantê-lo limpo, higiênico, para evitar quaisquer sinais visíveis de menstruação. E é por isso que o estigma persiste: está coberto por finas camadas de celulose. Isso não mudará enquanto a menstruação for apresentada como um problema a ser consertado, administrado e escondido — diz. — E isso acontece na maioria das partes do mundo, senão todas. Já ouvi muitas vezes legisladores e defensores do tema afirmarem que absorventes são um ponto de partida. Mas, há dez anos, falamos sobre pontos de partida tangíveis e é hora de adotar políticas e programas mais ousados e holísticos sobre saúde menstrual. 

Baixa escolaridade

Em muitos países, além do estigma em torno da menstruação, a falta de acesso a produtos de higiene tem impactos também na baixa escolaridade. Na África, possivelmente o continente mais afetado, uma em cada 10 meninas falta às aulas porque não tem acesso a produtos adequados ou porque não há banheiros privados seguros. Na África Subsaariana os números são ainda mais alarmantes: muitas meninas perdem até 20% do ano letivo e tantas outras abandonam completamente a escola por tabus acerca da menstruação. Em Ruanda, por exemplo, muitas meninas perdem até 50 dias de aula ou trabalho todos os anos por causa da pobreza e do estigma.

A ONG ActionAid atua em vários países do continente africano para tentar combater a pobreza menstrual. Na Etiópia, por exemplo, muitas escolas contam apenas com um banheiro coletivo, que nada mais é que um buraco no chão.

— É especialmente importante que as meninas frequentem a escola porque, quando desistem, muitas vezes se casam. Quando vão à escola, ganham confiança, e nós as educamos sobre os seus direitos e sobre igualdade — conta a  professora  etíope Birhane Kenenies.

No Brasil,  de acordo com um relatório do Unicef  deste ano, que traçou um panorama da realidade menstrual no país, 713 mil meninas vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em seu domicílio e faltam a mais de 4 milhões delas itens mínimos de cuidados menstruais nas escolas.

Para Winkler, que também é professora de Legislação Internacional de Direitos Humanos na  Universidade da Europa Central de Viena, na Áustria, é preciso reconhecer o poder do estigma menstrual e seu impacto em todas as esferas da vida, incluindo saúde, educação, trabalho e participação na vida pública.

— Combater o estigma menstrual significa criar condições em que seja impensável que alguém seja demitida porque seu sangue 'sujou' o carpete, como aconteceu com uma operadora de call center nos Estados Unidos. Em que  os carcereiros não escondam produtos menstruais para humilhar e degradar mulheres presas. Em que   o som de um tampão ou absorvente em um banheiro público não cause ansiedade para uma pessoa trans. Em que   as ideias de ninguém sejam descartadas porque são 'TPM'. Espero que possamos usar o momento atual em torno da menstruação para transformá-la em um movimento duradouro de mudança.

Fonte: Marina Gonçalves/O Globo