Comunidade terapêutica de MG que recebeu mais de meio milhão do governo é acusada de tortura

Comunidade terapêutica de MG que recebeu mais de meio milhão do governo é acusada de tortura
Foto do relatório mostra jovem com marcas de agressão Foto: Reprodução Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT)

BRASÍLIA— A comunidade terapêutica "Centro de Recuperação Álcool e Drogas - Desafio Jovem Maanaim", que recebeu mais de meio milhão de reais durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, foi acusada nesta quinta-feira de tortura e desrespeito aos direitos humanos. A instituição fica em Itamonte, no sul de Minas Gerais.

Nesta quinta-feira, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) divulgou um novo relatório denunciando que em uma inspeção feita na instituição no dia 2 de outubro foram verificados casos de tortura, insegurança alimentar, registros de assédio sexual, além de imposição de crenças religiosas e uso indiscriminado de medicamentos sem prescrição. O Mecanismo denunciou ainda a ocorrência de um homicídio dentro da comunidade terapêutica, além de riscos de contaminação por covid-19 e situação de privação de liberdade.

A ONG viu seus recursos inflarem durante o governo do presidente Jair Bolsonaro. Enquanto em 2018, último ano do mandato de Michel Temer, a entidade recebeu R$ 128.657,91 do governo federal, em 2019, primeiro ano da gestão Bolsonaro, o valor saltou para R$346.388, 26, um aumento de cerca de 169%.  Neste ano, segundo dados do portal da Transparência, até o momento, foram repassados à entidade R$288.611,05, o valor é fruto de repasses feitos pela Secretaria Nacional de Prevenção às Drogas (Senad) do Ministério da Cidadania.

Em 2019, a maior parte também foi repassada pela Cidadania, apenas R$ 29.230,12 foram recursos do Fundo Nacional Antidrogas, do Ministério da Justiça e Segurança Pública. O ex-ministro Osmar Terra, que comandou o Ministério da Cidadania de janeiro 2019 até fevereiro de 2020 é franco apoiador da utilização de comunidades terapêuticas para internação de dependentes químicos.

"O montante de vagas financiadas tanto pela esfera federal como por municípios explicita que a referida instituição tem como importante base de sustentação o repasse de verbas públicas", diz o relatório.

Segundo o texto, a própria instituição afirma que 82% dos internos estavam acolhidos em vagas financiadas por entes públicos. De acordo com a Maanaim, em setembro desse ano, eram 26 vagas financiadas pela Senad e cinco por municípios.

Esse aumento vem na esteira do aumento de repasses promovido pelo governo para essas comunidades. Em abril de 2019, o GLOBO noticiou que como parte de sua Política Nacional de Drogas, que prevê a abstinência como objetivo no tratamento da dependência química, o governo de Jair Bolsonaro decidiu financiar uma em cada quatro comunidades terapêuticas existentes no país, destinando dinheiro público a esses espaços de cunho essencialmente religioso, voltados ao abrigamento de dependentes.

No relatório, o órgão cita os castisgos a que são submetidos os internos, como adolescentes que são obrigados a dormir no chão, sem colchão, por infringir regras da instituição.

"Qualquer descumprimento é conduzido a uma punição: “ficam sem a refeição, é tirado o colchão ou ficam trancados no quarto o dia todo. Há relatos de violência com paus, taco de madeira ou uma colher de pau grande, às vezes recebem “tapas na cabeça e nas costas” como forma de repreensão ou “correção”", diz o documento.

O novo relatório foi uma atualização de um documento produzido em 2017, quando o MNPCT juntamente com o Ministério Público Federal (MPF) e o Conselho Federal de Psicologia inspecionaram  28 comunidades terapêuticas em 11 estados e no Distrito Federal. Na época, o Centro Maanaim foi um dos que mais registrou situações de desrespeito aos Direitos Humanos. Na ocasião foi instaurado um inquérito pelo MPF.

" Em geral, os adolescentes com menor estatura, mais novos, com transtorno mental, identificados como homoafetivos eram os que apanhavam dos monitores. Além das agressões com murros e chutes, foram sinalizados diversos objetos que também eram usados para castigar os adolescentes, tais como: a) um bastão que foi customizado encontrado em um dormitório; b) vassouras e rodos que estavam quebrados e remendados localizados nos quartos; c) uma colher de madeira encontrada na cozinha", denuncia o relatório.

Os adolescentes citam ainda o uso de medicamentos para "dopar" os internos que estão de castigo. Segundo o MNPCT, "foi verificado remédio psicotrópico sendo dado aos adolescentes sem receituário médico, ou ainda sendo prescrito e administrado como forma de contenção química para aqueles adolescentes com reiteradas tentativas de fuga."

O GLOBO questionou o Ministério da Cidadania sobre o aumento significativo de repasses para a instituição mesmo após relatório de 2017 indicando os delitos cometidos na instituição, mas ainda não obteve resposta.

Fonte: Leandro Prazeres e Paula Ferreira/O Globo